40 ANOS DE CADERNOS NEGROS – NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE | MARIO AUGUSTO MEDEIROS DA SILVA

 

Não é coisa de PretoMário Augusto Medeiros da Silva*

No dia 16/11, a convite de Lívia Lima da Silva, estive com Miriam Alves e Cuti Silva no Sesc Belenzinho para a atividade sobre os 40 anos dos 
Cadernos Negros, intitulada "Nossos passos vêm de longe". Foi um batepapo que me deixou mais rico. Para mediar a conversa com o público, para os 40 anos dos Cadernos e também para este Dia da Consciência Negra produzi o texto abaixo, uma pequena contribuição, que compartilho com quem se interessar.

Não é coisa de pretos sair do seu lugar. Desejar e concretizar ser escritor, escritora; ter livros publicados, lidos e estudados no Brasil e no exterior. Não é coisa de pretos ser membros fundadores de uma série coletiva, com 40 anos de existência ou de um grupo de escritores com 37 anos de história, publicando anual e alternadamente contos e poemas nos Cadernos Negros sob a responsabilidade do Quilombhoje.

Não, não é coisa de preto também esta coisa de projeto coletivo de longo prazo. Tampouco que pretos se unam em nome da Literatura, de uma literatura negra, negro-brasileira, afro-brasileira. Que eles procurem outros irmãos e irmãs, malungos, escritores companheiros de viagem. Que saibam ler e escrever muito bem, a ponto de poder usar a língua como bem queiram, subvertê-la para dizer o que quiserem e em especial o que não lhes era dito, onde não lhes era permitido figurar como personagens e autores, como heróis, protagonistas, trágicos, cômicos, complexos eu líricos, primeiras pessoas negras. Subvertendo o código social, combatendo o racismo literário. Pretos que saem do seu lugar e que procuram outros iguais. Que procurem e achem. Cuti e Hugo Ferreira para fundar os Cadernos. Que se encontrem primeiro com Oswaldo de Camargo, Mário Jorge Lescano, Abelardo Rodrigues, Paulo Colina; e depois com Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Sônia Fátima, Jamu Minka, Oubi Kibuko, Miriam Alves, Abílio Ferreira para iniciar e prosseguir com o Quilombhoje.

Pretos que saibam histórias e queiram registrar as narrativas de outros pretos, de outros tempos que também fizeram coisas que não eram coisas de pretos, como Luiz Gama, Lino Guedes, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, José Correia Leite, Carolina de Jesus. Pretos prefaciadores como entre outros José Correia Leite, Clóvis Moura, Thereza Santos, Lélia González, Vera Lúcia Benedito. Que saibam trabalhar com história oral e registrem as muitas vidas de Velhos Militantes, como José Correia Leite. Pretos que fotografam e desenham e sabem fazer capas belíssimas para os seus próprios livros. Lindas, como este símbolo dos Cadernos, os três rostos ou máscaras negras irmanados pelo livro, desde o volume 5. Pretos que comentam seus próprios textos. Que organizam encontros de Poetas e Ficcionistas Negros em Reflexões sobre a literatura afro-brasileira e Criação Crioula, Cadernos comemorativos com seus Melhores Contos e Melhores Poemas. Cadernos comemorativos pelos seus 30 anos. Que tenham seus nomes figurados em antologias cheias de Axé, Negros Escritos, Razão da Chama, Callaloos. Que tenham contos inscritos junto de outros escritores não negros entre os Melhores do Século XX. Que sejam parte grande uma Antologia monumental sobre Literatura e Afro-Descendência no Brasil iniciada no século XVII até o nosso século XXI.

É uma longa estrada povoada de pretos que não sabem seu lugar e fazem coisas que não são coisas de pretos no Brasil. É o que se diz por aí. Coisas impossíveis e inviáveis para o racismo à brasileira, que mesmo quando televisivo e filmado insiste em dizer que não existe e que não foi bem assim, vejam bem. Vejam bem que esse racismo não existe, assim como não existem pretos que escrevem. São todos escritores, menos na hora de publicar junto, de figurar nas editoras nacionais. Aí, vejam bem, é necessário discutir a qualidade porque, ora, é coisa de preto, então… E esses pretos escritores, essas autoras negras, esses criadores insubmissos dão às costas ao vejam bem, pondo as mãos nos próprios bolsos há mais de quarenta anos e financiam a sua própria existência no meio literário. Fazem projetos de Livro do Autor. Publicam-se. Insistem-se. Há 40 anos. E contando

E daí surgem os Poemas da Carapinha, os Momentos de Busca, as Estrelas no Dedo, as Quizilas, Dois Nós na Noite, Pretumel, Brasil Afro Revelado… e tanto mais. Puxa, pretos que escrevem e publicam existem. Mas não é coisa de preto.

Não é coisa de preto persistir contra o racismo brasileiro e a cegueira editorial? Enfrentar, resistir, criar, imaginar, encantar gerações de leitores negros e negras. Lançar anualmente novos poetas e contistas. Abrir espaços para os textos que um dia foram inéditos de Conceição Evaristo, Arnaldo Xavier, Cristiane Sobral, Allan da Rosa, Elizandra Souza, Sacolinha, Akins Kintê. E muitos outros pretos que um dia andaram, voltam trilhar, caminham sempre juntos numa longa estrada negra de personagens e autores pretos, cujos passos fora de lugar vêm de longe, de diferentes mundos negros, que não sabem qual é o seu lugar, porque ele está em toda parte que a imaginação preta quiser e somente esta vontade preta, individual e coletiva, permitir.

Vida longa aos Cadernos Negros.

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*Mário Augusto Medeiros da Silva é doutor em Sociologia e professor do Departamento de Sociologia do IFCH-Unicamp. Autor de A descoberta do insólito – Literatura negra e literatura periférica (1960-2000).

 

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