COCA-COLA, BACH E A VIDA – UMA CRÔNICA DE OSWALDO DE CAMARGO

Caríssimos, caríssimas:

Enquanto espero sua benevolência dirigida ao interesse, compra e, naturalmente, à leitura atenta de minha novela Negro Disfarce, da Ciclo Contínuo Editorial, que tem lançamento em Brasília dia 17 próximo, em live, peço sua permissão para lembrar nesta crônica como conheci a primeira compradora deste livro, quando ela ia nos seus 14,15 anos. Tem hoje 25.

Ficou carinhosamente em minha memória por ter feito a pergunta mais intrigante até hoje dirigida à minha pessoa: quis saber sobre meus anos mais felizes até alcançar os cumes situados no encanto e placidez (?!) dos oitenta.

Descobri que ela é feliz, apesar dos seus 25 anos…

Sinto-me feliz com a felicidade dela e você, que, não duvido, vai ler minha novela, certamente já está  compactuando  com a felicidade dela e a minha.

Andei pensando e concluí há dias que felicidade tem alguma parecença com pandemia: espalha-se ao derredor e vai seguindo para longe, bem longe...

Leia esta crônica; depois leia Negro Disfarce, para refletir sobre a questão da identidade negra em nosso país.

Se você é feliz, não se incomode; siga feliz. Faz bem pra todo mundo.

Coca-Cola, Bach e a vida

...E por falar em “Vidas e ações notáveis de homens e mulheres após os 50 anos”, matéria hoje obrigatória em várias instituições de ensino do País, dia desses uma garota que sonhava iniciar estudo em uma respeitável escola de ensino superior, me perguntou, ansiosa de uma resposta honesta e original, quais  tinham sido até aquela data  os anos mais felizes de minha vida.

Queixo erguido, sobraçava, vaidosa, surrada brochura de Helena, do nosso Machado de Assis, capa propositalmente exposta para que eu visse, notasse, avaliasse seu grau de dedicação às Letras  e culturais propósitos.

Quinze anos, talvez, cabelos à la garçon, nos olhos a certeza de que, graças às minhas “extraordinárias” relembranças, arrancaria a nota suprema na nova matéria, ensinamento abissalmente  distante do que poderia interessar à sua verde existência.

Decidido a dar o melhor de mim e emocionado pela eleição de minha rasa pessoa para o seu intento de sobressair entre as companheiras de turma, indaguei, por minha vez: você gosta de Coca-Cola?

Refletindo sobre a entusiasmada confirmação, decidi, no meu íntimo, que a garota merecia uma resposta bem-meditada e, no mais possível, honesta.

A afirmação – “gostava, sim, muito, de Coca-Cola” – me convenceu de que a juvenil leitora de Machado era desdenhosa de tudo o que é tortuoso, intrincado de se desvendar, portanto, não me cabia resenhar fatos obscuros de minha vida nem memorar o que eu mesmo não tinha ainda conseguido entender do meu passado.

Após selecionar, carinhosamente, algumas de minhas mais queridas reminiscências, e compondo um rosto aonde compareceram saudade, desalento e uns fiapos de melancolia, respondi, para abater logo a ânsia e a expectativa que eu percebia nos olhos inquietos de minha adolescente  pesquisadora:

– No ano em que tomei minha primeira Coca-Cola, tive quebrada a perna esquerda, mas em compensação, recluso em casa por um tempo bem prolongado, dediquei-me a embelezar minha letra. Ficou tão primorosa que a professora decidiu que aluno bom de escrita teria, necessariamente, caligrafia parecida com a minha. Aplaudi-me, satisfeito, aceitando ser mais do que justa a minha vaidade.  Veja, menina, que me foi esse um ano muito feliz. Mais: ouvi, no rádio,  pela primeira vez, uma melodia plenamente linda, cujos sons subiam até o último degrau  da Eternidade: Jesus, alegria dos desejos dos homens, de Bach.

Marcou-me aquele dia,  marcou-me o ano todo e, quem sabe?, a vida.

Anote aí: estreia em beber Coca-Cola; liderança na escola pela caligrafia; entrada, sem volta, na confraria dos que veneram João Sebastião Bach.

  Mas, professor, estou falando só de felicidade…

  Desculpe, volto à perna quebrada.

Devido a ela, prisioneiro do meu quarto, prestes a me abater de tédio, tive que enfrentar a escolha de uma entre três possíveis atividades: dormir o dia todo; espiar, da janela, a filha da vizinha, que desde algum tempo vinha ilustrando a paisagem sem graça  que eu avistava do meu quarto; e, última, tresler um dos quatro livros  presentes em nossa casa: O Saci, do Monteiro Lobato; Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur; Genoveva , Duquesa  de Brabante, do cônego Schmidt; e Lobo Bom (deste último, o  nome do autor, infelizmente, foi devorado pelo olvido.) 

  Olvido?

  Digo, esquecimento…

Minha juvenil interlocutora riu-se e percebi, rente a seu riso, uma pontinha de menosprezo pelo inesperado vocábulo   que eu impensadamente lhe apresentara.

– Estou querendo saber, professor, sobre os anos mais felizes de sua vida!

Anos felizes...

Sim; vejamos: para Ibsen (me desculpe citar um espécime de homem tão do passado, mas você já ouviu falar no teatrólogo norueguês Ibsen, não?), “a felicidade é antes de tudo o sentimento tranquilo, contente e seguro de inocência”. Creio, conformando-me com  Ibsen, que  fui plenamente feliz até os meus três, quatro anos. Depois…

  Tá brincando!

– Não brinco, não. Para mim, esses devem ter sido os anos mais felizes. Lembro-me  de como avançava rumo ao mundo e à vida! E ninguém me percebia. E, por não me perceber, ninguém me detinha... Anos superabundantemente felizes.

– O professor é filósofo.

Não; às vezes penso... Eu mesmo ficou assustado.

                                          ***

A menina leitora de Machado me trouxe uma indagação dificílima de resposta.

Os anos mais felizes foram-se, sem carimbo a respeito. Os infelizes, também. Postos em uma balança, misturam-se aos momentos que, fugidios, irrelevantes, são a maior parte de nossa vida.

  Isso, professor! O que acha da vida?

– Um luxo! O duro mesmo é prosseguir no papel de gente o tempo todo. Entendeu?

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Oswaldo de Camargo é jornalista e escritor.um dos mais destacados escritores negros brasileiros das últimas décadas.

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