É preciso ler Frantz Fanon: Filosofia, Psicanálise e Teoria Social – Ronaldo Tadeu de Souza

É preciso ler Frantz Fanon: Filosofia, Psicanálise e Teoria Social Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. Deivison Mendes Faustino. Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

Publicado em Cadernos Cemarx, Campinas, SP, nº 13, 01-08, e020009, 2020

Ronaldo Tadeu de Souza*

Resumo: A resenha procura apresentar ao leitor o livro de Deivison Mendes Faustino sobre o psicanalista, sociólogo e filósofo martiniquense Frantz Fanon. Importa aqui que o livro e as pesquisas de Deivison Mendes Faustino é uma espécie de segunda recepção do pensamento fanoniano no Brasil em um importante contexto nas ciências sociais e na sociedade de debate sobre questões raciais. Palavras-chave: Frantz Fanon. Questão Racial. Colonialismo. Filosofia/ Psicanálise/Teoria Social.

Frantz Fanon começou a ser conhecido no Brasil nos anos 1960. Por essa época seu pensamento, suas ideias e concepções teóricas tinham como divulgadores indiretos, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. O filósofo e a filósofa franceses já naquele momento figuravam como intelectuais públicos comprometidos com as causas dos oprimidos, em geral. Evidentemente, as questões envolvendo os países coloniais tinham precedência uma vez que Sartre e Beauvoir discursavam e agiam em um país na qual as marcas da colonização eram expressivas. Assim, refletir a transformação social nos povos do Terceiro Mundo é pensar os processos de descolonização. Antonio Sérgio Guimarães formulou com precisão este estado político e conceitual das coisas: “ora, Sartre e Fanon representavam a fusão do anti-imperialismo, do antiracismo, da descolonização e das lutas de classes” (2008, p. 102). Contudo, a partir daí, mesmo sendo conhecido via Sartre e o famoso texto introdutório que escreveu para Os condenados da terra – “Michael Lowy, por exemplo, se lembra de ter discutido o prefácio de Sartre com seus companheiros em São Paulo, provavelmente ainda em dezembro de 1961” (Ibidem, p. 103) – Fanon tornar-se-ia escritor e teórico presente nos debates da esquerda brasileira; é claro que não com a devida atenção, seriedade e até precisão analítica. Nelson Werneck Sodré, Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Octavio Ianni, Paulo Freire e, espantosamente, “Glauber Rocha” (Ibidem, p. 107) leram, ou tiveram algum contato com a obra de Frantz Fanon.

O livro de Deivison Mendes Faustino publicado em 2018 pela editora Ciclo Contínuo Editorial inscreve-se, de certa maneira, neste percurso que traçamos brevemente acerca da recepção da obra de Frantz Fanon entre nós. Entretanto, nosso autor não é um leitor curioso (no bom sentido) e ocasional da obra de Fanon seguindo modas intelectuais. Professor de sociologia da Unifesp e pesquisador do NEAB-Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros na mesma instituição, Deivison realiza trabalho rigoroso e sofisticado sobre o pensamento do psiquiatra, escritor, intelectual e ativista negro martiniquense. Ainda que hoje tenhamos diversas pesquisas, leituras e apropriações de Frantz Fanon, com enfoques variados a partir da psicologia, sociologia, teoria cultural, que o torna autor fundamental no debate acadêmico sobre raça e pós-colonialidade, Deivison Mendes Faustino inscreve-se, hoje, como um dos principais, senão o principal pesquisador da obra de fanoniana entre nós.

Com o livro que iremos comentar o leitor brasileiro tem em mãos um texto acadêmico e, ao mesmo tempo, proseado acerca do sentido da psiquiatria de Fanon, que neste artigo iremos comentar nas chaves da filosofia, psicanálise e teoria social: essa é a nossa contribuição “crítica” sobre o trabalho de Deivison Mendes Faustino concernente ao percurso das ideais fanonianas.

A sentença final de Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro é que uma vez que Fanon “não esta mais entre nós” (FAUSTINO, 2018, p. 130) teremos a exigência de nos haver com as “consequências” (Ibidem) e implicações das respostas, resoluções, teorizações e ações que estabelecemos para as perguntas lançadas por aqueles e aquelas, nós mesmos, na luta antirracista e anticapitalista. Ainda assim, dirá Deivison Mendes Faustino, “o retorno à [...] obra” (Ibidem) de Fanon segue sendo um “exercício inspirador e necessário” (Ibidem), sobretudo nos dias atuais. Com efeito, além de intelectual público, como bem demonstra Faustino, atributos pouco comuns aos letrados de hoje, Frantz Fanon mesmo sendo médico, soldado, militante e psiquiatra pode ser lido e estudado como que contribuindo para três áreas fundamentais e constitutivas das ciências humanas, qual seja: a filosofia, a psicanálise e a teoria social. Daí que a pujança do pensamento fanoniano ser, precisamente, sugestiva e, pode-se dizer inescapável para os que querem as humanidades críticas hoje.

O aspecto peculiar da teorização sobre a questão racial do pensamento de Frantz Fanon considerado por Faustino é dado pela erudição que possuía o psiquiatra martiniquense, erudição essa verificada nas páginas de seu Peles negras, mascaras brancas. Fanon de quando aluno em França assistiu às “aulas de Jean Lacroix [...] e MerleauPonty” (Ibidem, p. 42), e, além disso, teve contato importante com Hegel e o Marx dos “Manuscritos Econômicos-Filosóficos” (Ibidem, p. 43) – autores e obra que circulavam no ambiente cultural e intelectual francês frequentado por ele. Esta experiência se sobrepôs à influência do poeta negro, também da Martinica, Aimé Césaire, importante no desenvolvimento do pensamento fanoniano. Destas circunstâncias de formação é que permitirão Frantz Fanon, argumenta Faustino, erigir sua interpretação filosófica acerca da alienação do negro.

Dessa forma, o que podemos chamar de filosofia fanoniana tem na estrutura imanente da pergunta “o que quer o homem negro?” (Fanon Apud Faustino, 2018, p. 55) seu significado mais decisivo. É que nela, assevera Deivison Mendes Faustino, está a “transparecer [o] [...] humanismo radical” (Ibidem) de Fanon. É que o psiquiatra reúne em suas reflexões os “elementos da fenomenologia existencial, do marxismo, [da] psicanálise [e da poeticidade de Aimé Césaire]” (Ibidem). Ora, com sua filosofia (da negritude) forjada no calor dos debates martiniquenses e franceses Fanon afirma os prejuízos humanísticos da precedência incondicional da cultura europeia sobre todas as outras. Faustino compreendeu bem este ponto do pensamento do psiquiatra, pois, ele diz que as coisas e costumes (arte, moral, afeto) europeus tornando-se “expressão universal de civilização, humanidade e educação” (FAUSTINO, 2018, p. 55) lança os nãoeuropeus (colonizados) no abismo cruel da alienação.

Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro, portanto, observa que nestas condições “o colonizado [o homem negro] é obrigado a abrir mão de tudo [que] lhe compõem” (Ibidem) sua existência. Por isso a filosofia da negritude, melhor dizendo da desalienação, de Fanon quis, em dissonância com o debate intelectual e político negro da época, um humanismo radical conquistado por meio da luta revolucionária dos povos oprimidos do Terceiro Mundo. Essa característica das reflexões de Fanon é compreendida com sensibilidade teórica e interpretativa por Deivison Mendes Faustino: ele lembra no fim do capítulo, Ensaios sobre alienação do negro, a referência no Peles negras máscaras brancas (na conclusão) ao mote do 18 Brumário de Luís Bonaparte de Marx em que este anuncia a revolução social como poesia do futuro – e não como ida à ancestralidade essencial. Eis aí a filosofia de Fanon analisada pela prosa de Faustino.

A área de especialidade de Frantz Fanon, no entanto, havia sido a psiquiatria/psicanálise. Seu trânsito pela filosofia, como observamos, deveu-se à formação erudita e crítica que recebeu no âmbito da cultura humanista francesa dos anos 1950. No entanto, enquanto psiquiatra e psicanalista negro vivendo no mundo dos brancos, seu impulso teórico alcançava aspectos eminentemente inventivos.

Nesse sentido, o livro de Deivison Mendes Faustino deve ser lido pelos que querem começar a entender o esplendor do pensamento psiquiátrico/psicanalítico fanoniano por dois motivos. O primeiro é que Faustino argumenta que a teoria psicanalítica de Fanon, sua psicanálise, teve como gênese conceitual a experiência mesma de um jovem negro de um pequeno país, a Martinica, vivendo, estudando, conversando, trocando ideias e impressões existenciais, elaborando circunstâncias afetivas num dos grandes países do ocidente – um dos pilares da cultura banca ocidental, a França. Ali como dirá Deivison Faustino, o autor de Peles negras máscaras brancas se perceberá um corpo negro. O que chama a atenção em Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro é sua argúcia em perceber a articulação entre as dificuldades apresentadas por Fanon em:

integrar-se à comunidade estudantil como um todo (leiase branca) [quer dizer] entregar-se ao isolamento, [...] uma sociabilidade extremamente segregadora [e o] olhar e a postura das mulheres brancas diante do corpo negro reproduzi[ndo] todos os estereótipos animalizantes projetados pelo colonialismo” (FAUSTINO, 2018, p. 47-48).

Estas experiências pessoais serão decisivas para a psicanálise e psiquiatria de Frantz Fanon: elas darão o tom do entendimento dele acerca de que o problema racial envolvendo o negro tinha de ser abordado a partir “do lugar da subjetividade na constituição humana” (FAUSTINO, 2018, p. 59). Mas uma subjetividade que fosse a explicitação “do caráter sócio-histórico dos fenômenos psíquicos [que] conduz a uma maquiagem da realidade – inclusive [a própria] subjetiva” (Ibidem).

O segundo motivo é que Faustino reconstrói a psiquiatria/ psicanálise de Frantz Fanon enquanto dimensão subjetivo-política de solução dos problemas do colonialismo (Ibidem, p. 60). Com efeito, a “reconstrução do mundo” (Ibidem) humano passa pelo irrecusável convite subjetivo à ação – é quando o homem e a mulher deixam de ser animalizados por uma sociedade violentamente racista e colonial e passam às “possibilidades concretas” (Ibidem, p. 61), de sorte a que estes mesmos homens e estas mesmas mulheres tornem-se acionais. A psicanálise de Fanon sustenta Faustino, quer um negro que diga: “meu corpo, faça sempre de um homem [com subjetividade] que questiona” (Ibidem).

Teoria social é o terceiro ponto que o livro de Deivison Mendes Faustino contribui na maneira de apresentação e análise da obra e do pensamento de Frantz Fanon. Nesta chave de leitura as proposições psiquiátricas fanonias podem ser apreendidas como contribuição para o entendimento de certos aspectos da vida social, sobretudo, em uma sociedade marcada pelo racismo como a nossa. Assim, o caráter que gostaria de chamar a atenção na leitura de Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro, diz respeito à questão que o intelectual martiniquense enfrentou no debate com seus pares escritores, ativistas, filósofos, e psicanalistas acerca das exigências de elogio do passado objetivando a superação do racismo e da primazia da cultura branca europeia sobre todas as outras. Faustino mobiliza para isso as intervenções públicas e políticas de Fanon tanto nos congressos de escritores e artistas negros que participou, como no horizonte de sua sociologia, teoria social, de uma revolução.

O enfrentamento teórico e social (cultural) do intelectual martiniquense foi em torno ao problema do “historicamente negado” (Ibidem, p. 119) concernente ao povo negro. Deivison Mendes Faustino aqui chama a atenção, para a peculiaridade das manifestações de Fanon a respeito. Enquanto Jean Price-Mars, reitor da Universidade do Haiti, no I Congresso para Escritores e Artistas Negros realizado em Paris (1956), asseverava a noção de que todo “povo [possui sua] cultura” (Ibidem, p. 84), e neste ponto o timbre é em perspectiva histórico-restaurativo, Fanon, dirá nosso autor, responde no sentido da negação da negação: era preciso não aceitar a disputa por passados não aceitos, ocultados, como constitutivos da luta antirracista. É que a incondicionalidade deste procedimento subjetivo (FAUSTINO, 2018, p. 117) impede de ver a cultura como sociabilidade do presente. Ou seja, a cultura como “ente vivo e aberto ao futuro” (Ibidem, p. 89); a cultura produzida no espaço de subjetividades negras em luta contra os colonialismos de ontem e de hoje.

Assim, Frantz Fanon pelas lentes da sociologia de Deivison Mendes Faustino propõe uma espécie de teoria social para a ação revolucionária em que “é o negro que cria a negritude, no exato momento em que rejeita a posição de objeto, mas para isso não pode partir de outro lugar que não o próprio locus político em que está inserida” (Grifo meu) (Ibidem, p. 105). Os problemas subjetivos do racismo estão situados no âmbito mesmo das sociedades humanas: a lição de Faustino através de Frantz Fanon é que isso não deve ser perdido de vista. A busca por emancipação dos negros, tanto os do continente africano partilhado pelos Impérios como os do atlântico negro (e dos povos colonizados, hoje diríamos subalternos de acordo à gramática e vocabulário dos conflitos e lutas do tempo presente), passa na leitura de Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro, por entender as nossas condições sociais e culturais alienantes da atualidade racista. Quer dizer, pelo combate para colocarmos em pé hoje e agora o forte ideal (social) de humanidade radical enquanto tal, o “novo humanismo” de Fanon (Ibidem, p. 126).

Trata-se, e este é o recado de Deivison Mendes Faustino em época de governos conservadores que tentam recolonizar e oprimir seus povos, então, de ler e estudar Fanon “como um exercício inspirador e necessário nesses dias tão incertos” (Ibidem, p. 130). Retomemos, com efeito, a filosofia, a psicanálise e a teoria social do intelectual martiniquense iniciando por este belo livro de Faustino.

Referências bibliográficas Guimarães, Antonio Sérgio A. A Recepção de Fanon no Brasil e a Identidade Negra. Novos Estudos Cebrap, nº 81, 2008.

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Ronaldo Tadeu de Souza, Universidade de São Paulo - Departamento de Ciência Política da USP.

 

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