Mudaria o Natal ou mudei eu? Crônica de Oswaldo de Camargo sobre infância de Machado de Assis

Mudaria o Natal ou mudei eu?

À memória de Maria Leopoldina Machado, mãe de Machado de Assis

Menino pobre do Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, mestiço de negro com mulher branca, como tantos outros de seu século, que é o XIX, entre as muitas perguntas possíveis sobre a vida de Machado de Assis, sobretudo os “seus dias de pequeno”, apresenta-se a curiosidade de saber como seriam seus Natais, por exemplo, a partir de 1845, quando ele teria seus seis, sete, oito anos, antes da morte de Maria Leopoldina, sua mãe.

Sabe-se que a respeito de sua infância, Machado, escritor com obra de tremendo fôlego, calou-se, frustrando leitores e a história literária do País. Resta-nos, neste caso, apoiado em alguns fatos de sua biografia, imaginar... Imaginar, por exemplo, que Maria Leopoldina, certamente, costurava para ele e a irmãzinha Maria uma roupa nova para o dia festivo, e esmerava. O pai, assinante do Almanaque Laemmmert – sabia ler! – dava-lhe o quê? Era hábito naquela família o presente, uma “lembrancinha” para marcar a data? Cantava-se o que no Natal? Algo se cantava, pois impossível manter-se no espírito dessa festa sem algum canto ao Menino aniversariante. “Noite Feliz”, a canção de Natal mais divulgada no mundo, é certo que não se cantava, pois, composta numa povoação dos Alpes austríacos, em 1818, só viria a ser conhecida no Brasil alguns anos antes do início do século 20, lá por volta de 1895. É possível imaginar ou acreditar que Maria Leopoldina ensinasse a Machadinho e à irmã versos de uma antiga canção natalina portuguesa, que se ouvia nas igrejas da Ilha de São Miguel, nos Açores, terra dela:

Pela noite de Natal,

noite de tanta alegria,

caminhando vai José,

caminhando vai Maria.

.

Abri a porta, porteiro,

porteiro da portaria!

Não deu resposta o porteiro,

porque também já dormia (...)

Quando voltou São José,

já viu a Virgem Maria

com o Deus menino nos braços

que todo o mundo alumia.

Possível, bem possível.

Imagino, entre os poucos pertences de Maria Leopoldina, um livrinho de receitas, brochura, de onde tirava, para alegria da noite, o roteiro humilde do que iria preparar. Essas duas, por exemplo, na grafia da época:

Biscoito de coco: 1 libra de araruta, ½ de assucar, bastante manteiga, 1 ovo, leite de coco. Leva-se ao forno brando. Pudim de queijo: 1 libra de assucar, 1 pires de queijo ralado, ½ libra mal pezada de pó de arroz, 16 ovos só 8 com claras, batem-se como para um pão de lot, depois ajunta-se-lhe a farinha, ½ quarta de manteiga, canella, passas e cidrão. Vai ao forno em formas untadas.

Cremos que foi também a simpleza da vida em sua infância, em um mundo que desapareceu – especialmente com a morte de Maria Leopoldina, quando Machadinho tinha dez anos –, a lembrança do que, fora do cotidiano, saboreava naquelas noites antigas e – ai dele! – a descoberta de que se tornara um imenso escritor, sem volta, que o levaram a escrever o verso final do seu famoso Soneto de Natal, que ecoa até hoje e que serve para todos nós:

“Mudaria o Natal ou mudei eu?”

_________________________________________________________________________

Oswaldo de Camargo é jornalista e escritor.um dos mais destacados escritores negros brasileiros das últimas décadas.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *