Pipoca: um conto de carnaval – Fábio Mandingo

Pipoca*

Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas noturnas. Helicópteros. Medo. Tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no chão desagua um rio de sangue: é carnaval em Salvador!

Minha missão é atravessar meu corpo negro em segurança até o Garcia, passando por toda a Avenida Sete, onde a festa corre solta. Eu já trabalhei o dia todo, vendendo cerveja e batida de maracujá. Desde de manhã cedo na luta, comprando gelo, arrumando isopor, descarregando caixas e mais caixas de refrigerante e cerveja. Tudo amarrado, trânsito lento, a paciência no limite em que um tombo mal dado  ou um olhar mal cruzado podem estourar um assassinato. Os pretos subindo e descendo a Ladeira da Montanha com sacas de gelo na cabeça, mulheres e meninas fortes trazem até quatro caixas de refrigerantes nos braços.

Eu se não tirar o meu agora no carnaval, passo o semestre todo no osso, e aí a vida não corre. A onda é essa mermo: correr na frente que atrás vêm gente!

Agora, noite de terça feira de carnaval, última noite da putaria, a galera tá na sede da loucura, na ponta da faca da maldade.

Quem não bateu em ninguém, tem que bater, quem apanhou tem que descontar, quem tem conta pra acertar, a hora é essa, quem não se armou com ninguém, tem que arrumar uma figura pra namorar hoje! Porque se não, já sabe, é o ano todo sendo comediado pelos camaradas da rua, e ficar só afinado os dentes pro carnaval que vem. "Os Home" então nem se fala, tem polícia que trabalha até de graça, pede pra trocar o dia, pra poder dar plantão na terça-feira.

Eu não vou mentir, já gostei, mas hoje em dia mano, na moral, pra mim é só trabalho, quero é ver minha nega, minha filha que tá me esperando, juntar "o bom" pra passar os próximos meses que o bicho tá pegando é no meu bolso.

Logo na Rua Chile o pau já comeu. Esse cara tomou um murro de algema na fonte, e taí no asfalto se batendo e sangrando. O motivo quem sabe são eles, o Choque que tá passando o rádio chamando a viatura. Eu tô só de passagem, só de passagem, e que meu Deus e Xangô me protejam.

Se descer pela Barroquinha é viola, os sacizeiros tiram meu escalpo e roubam até minha cueca. A Baixa dos Sapateiros já virou a cidade fantasma do crack, e só quem não tem nada a perder é que correria o risco. A Avenida Contorno, do outro lado, é outra conversa: choque descendo, P.E. subindo e agente da civil dando bote de paisano. Até eu explicar o dinheiro guardado no tênis, ia eu no rodão da 1ª e só quinta- feira tava solto. O jeito é mesmo atravessar a muvuca, seguir na levada, pronto pra tudo e entregar a Deus.

Desde a Praça Castro Alves é terra de ninguém. Eu fiquei nessa de pensar na vida e só percebi quando o trio tinha já começado a tocar. Sorte minha que era Baby Consuelo sem pecado e sem juízo, aí dá pra subir até a Carlos Gomes no vácuo de um cordão da PM que atravessou a praça. No começo da avenida eu já pego Margareth botando o chão pra tremer. Sua voz potente atravessa os corpos em milhares de decibéis, a percussão come no centro, o couro das congas é que marca o ritmo, a massa se agita ao som de Dandalunda, e eu sigo a minha estratégia: dançar junto com a música, cuidando pra não levar pancada, e avançar uns cem metros a cada intervalo.

O trio de Margareth é de pipoca, só o povão é quem vai atrás mesmo. Viola de um lado, biriba do outro, playboy nem pensa em colar. Desvio dos grupinhos, é onde mora a covardia. Um que pare de vacilo no meio de uma barca dessa: eu que já sou macaco velho, sempre na levada. Minha mulher me esperando em casa, ó praí, eu colei foi numa pretinha que me deu um sorriso e fui grudado nela até o outro trio. Ainda dançou pra mim, alegria da cidade, e enfiou a língua quente em minha boca, dançou e me soltou de volta no fluxo de gente. Mais à frente rolou uma briga grande, eu conheço uns caras de Castelo Branco, mano, os caras treinam o ano todo pra barbarizar no carnaval. Mistura com cravinho, duas gramas de pó, o peão parece o satanás, cada músculo definido brilhando de suor, superagilidade, maldade pura, ginga que ninguém nem entende a velocidade dos murros que derrubam o outro preto em sua frente. Cara pisada no asfalto, barriga chutada, dente quebrado. Os pivetes fazem os halteres com latas de leite cheias de cimento, cabos de vassoura, e vão se inchando de fevereiro a fevereiro. Corta perna de calça, costura um saco de boxe e vai calejando a mão até ficar parecendo uma soqueira, um murro, uma queda.

Quem gosta mais de valentão é a P.E. Tem quase  um metro e meio de madeira maciça, o cassetete da P.E., vai te buscar por mais que você corra, e onde bate quebra. Uma briga entre galeras é sempre o pretexto pros meninos da pátria descerem o pau em todo mundo. Vão abrindo um clarão por onde passam, a multidão se pisoteia pra fugir, e eu não perco o meu caminho, vou pelo canto do trio de bloco, pulando um samba reggae das antigas que ninguém se esquece. Mas trio de bloco é o diabo pra passar: os parmalat dançando suas coreografias coloridas no meio da avenida, protegidos por um cordão de seguranças negros. Você tem de passar espremido. Se o cara que está encostado na parede não soltar um murro, pode ter certeza que o cordeiro vai soltar, que cordeiro também é instinto ruim, e hoje é o último dia de carnaval. Se não for um dos dois, tem sempre o fluxo oposto descendo de volta pra Praça, e daí você pode esperar.

Bater em segurança é otarice, porque são muitos. Parar pra brigar não dá, que a multidão quer passar e te empurra. Eu me fixo é em quem vem na frente. Um outro preto de uns dois metros que para na minha frente e larga dois cruzados. Só tenho tempo de desviar e sou empurrado mais uns cinco metros à frente e nunca mais o verei. Dois milhões de pessoas na rua, nunca mais o verei. Tem até grupinho de mulher de shortinho enfiado que junta pra querer dar pancada em marmanjo, e se você não ligar, toma.

Passei do trio, toca outra velha do Olodum, folgou, dá até pra dançar. Os playboys dentro do cordão, fantasias exóticas, drogas liberadas, cerveja e gente bonita, como eles dizem por aqui. Câmeras de Tv, artistas famosos, luzes de refletores, flashes e helicópteros sobrevoando o circuito, tudo ao mesmo tempo. Nós somos apenas o cenário da festa deles.

Quando a banda para, então as coisas sossegam um pouco, uns e ôtro come um churrasquinho, bebe uma cerveja, come um acarajé. Parei na Dona Júlia na altura do Tuiuti. Três da madrugada e eu indo. Ela com seus sessenta anos, mais quatro filhos e os netos que não aguentaram o tranco e pegaram no sono sobre uma caixa improvisada de papelão. Não para nem pra conversar comigo. Vai falando e despachando uma latinha, virando a carne, remexendo os bolsos atrás de dinheiro trocado. Eu até já gostei de beber, mas deu problema porque eu gostei demais. Agora eu quero é chegar em casa e me aninhar com minha nega, que tem umas sem álcool no congelador. Tchau Dona Júlia, e eu vou aproveitar essa trégua.

Essa paz aparente, no entanto, se restringe à avenida principal. Nos becos e vielas transversais, o terror come solto. Um é o beco da Ribeira, onde só entra o pessoal da cidade baixa. Em outro somente chega o pessoal de São Caetano e Fazenda Grande, outro só cabe o povo do subúrbio. Outro é das Cajazeiras, outro da zona do Cabula. Ai daquele que der de entrar pelo caminho errado. De toda maneira, todo mundo sabe que toda comunidade tem suas diferenças internas. Os caras da rua de cima não se dão com os caras da rua de baixo, os do Bonfim não se dão com os caras da Boa Viagem, e nem os da Cajazeiras Oito com o pessoal da Dez. O momento de resolver é justamente esse, sob a pena de ficar escorado o resto do ano, nas rodas da vizinhança.

Eu passo largo nego véi, que meu movimento agora é outro!!

Outro trio de bloco, me fodeu: Chiclete com Banana. Último dia de carnaval, ninguém merece. Só música acelerada, a batida perfeita pra pilantragem, o povão vai ao delírio diante de seus ídolos maiores! Só entra quem guenta, vai ficar esperando o trio passar? Eu, um nego pardo e magrelo, ninguém dá nada, mas sou gente ruim também, e nada disso pra mim é novidade. Também já desci, e muito, na avenida, com os cowboys de lá da área, pra ver quem era o cruzado mais rápido do velho oeste, já vim ano após ano pra cobrar comédia do ano passado, já sangrei e tirei sangue nessa avenida, e te digo hoje que a minha é passar batido, que eu não vejo sentido nenhum nessa gladiação: os brancos dançando protegidos e a gente aqui fora se matando. Tia velha trabalhando, e eu, homem barbado, vacilando. Eu se não for pra trabalhar não saio nem de casa, pra te dizer a verdade, mas aqui estou.

Eles têm o costume de começar a introdução da música bem lentinha, pra  massa cantar junto. Num momento dão uma parada brusca e recomeçam num galope louco que parece que pontua um bombardeio de adrenalina pro coração. É bom pra quem gosta, devo confessar. Na fé do Senhor, passei sossegado e depois ainda dancei uma levada com outra princesa da Liberdade que queria que eu a levasse pra casa, meu Deus! O vocalista é o diabo, parece que gosta de acelerar mais a música pra ver o povão se descontrolar, e ainda é torcedor do Bahia, a miséria. Larguei a Princesa Preta, preta, meu dia já chegou, meu coração já está dado: eu passei do trio, minha corrente, quebrei pro Campo Grande e tô em casa. Daqui pra lá eu só tomei uma cutucada dos "home" pra sair da frente do caminho, tão distraído que ela me deixou, embebedado no seu cheiro. Um mês de costela dolorida, já sei que não fraturou, mas foi pouco, qualquer vacilo no carnaval é fatal.

Me espere minha pretinha, eu tô chegando com o dinheiro enrolado na meia, minha mulher, chegando com vontade, que terça-feira de carnaval não termina assim, sem encontro de trios, só quando um de nós se desmaiar.

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Fábio Mandingo nasceu em Santo Amaro da Purificação/BA, mas cresceu e vive na capital baiana. Graduado em História pela Universidade Católica de Salva- dor, especializou-se em História Social do Negro no Brasil, é mestre em Educação pela UFBA e trabalha como professor na Rede Municipal de Ensino. Publicou Salvador Negro Rancor e Morte e vida Virgulina e Muito como um Rei! pela Ciclo Contínuo Editorial. Tem o livro As últimas cartas de Babilônia no prelo.

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