Resenha do livro “Lino Guedes – seu tempo e seu perfil”, de Oswaldo de Camargo | Ricardo Riso

Foto | Rua Poeta Lino Guedes, município de Socorro/SP - Marciano Ventura

*Ricardo Riso

A editora paulistana Ciclo Contínuo inicia um importante trabalho de publicar fortuna crítica de intelectuais negros brasileiros, preenchendo, assim, uma lacuna em nosso mercado editorial. A coleção Con_textura Negra, elaborada por Marciano Ventura, possui formato de bolso e paginação reduzida, contribuindo para a proposta introdutória ao autor contemplado sem perda de qualidade e aprofundamento em razão dos nomes selecionados de notório saber para confecção de cada volume.

O escritor e crítico literário Oswaldo de Camargo é o responsável pelo volume Lino Guedes – seu tempo e seu perfil (2016). O título já é bastante sugestivo, pois é essencial termos como perspectiva de análise da obra de Lino Guedes o contexto do pós-abolição e todas as adversidades para a população negra e como este intelectual se insere e se destaca nesse período.

Concordamos com o crítico quando afirma que Lino Guedes é um autor que merece destaque na literatura negra e na literatura brasileira como um todo. Nascido em 1897 e morto em 1951, Guedes atuou em Campinas e na cidade de São Paulo, época em que ocorria um racismo segregacionista e costumeiro (DOMINGUES, 2004) de fortes tensões raciais entre brancos e negros na capital paulista e com reflexos no interior. Esse racismo à paulista diferia do racimo brasileiro, pois, enquanto este procurava manter uma suposta cordialidade, dissimulação e informalidade, aquele era explícito e hostil. O racismo à paulista mantinha uma série de mecanismo para justificar a desigualdade costumeira do tempo da escravidão, mantendo os negros inferiorizados e submetidos a uma hierarquia racial, além da aversão da elite paulista aos ex-escravos, reforçada pelo separatismo desenvolvido pelos imigrantes brancos. Estes se consideravam superiores aos negros e aqui encontraram um ambiente no qual negros não podiam representar papéis de brancos, apoiado por códigos legais, costumes e uma segregação étnico-racial atuante no mercado de trabalho, instituições, escolas, lazer, áreas da cidade, práticas religiosas e desportivas, relações conjugais, ou seja, normativo no cotidiano das cidades.

Esse foi o contexto de atuação de Lino Guedes e para Camargo não há como “entender o verdadeiro Lino Guedes sem pelo menos uma vez entrar no reduto miserável do negro paulistano quarenta e poucos anos após a Abolição” (CAMARGO, 2016, p. 47).

Guedes tornou-se um dos protagonistas da chamada Imprensa Negra, foi um dos fundadores do jornal Getulino e colaborou em Progresso, tendo também trabalhado em diversos jornais da “imprensa branca”. Na literatura, publicou livros em diversos gêneros, mas sua importância se dá no âmbito da poesia, uma vez que Guedes foi o primeiro autor negro a escrever contemplando um público negro, ainda que a maioria desses leitores não dominasse a leitura como ficou registrado em dedicatória do livro O canto do cysne preto: “O que aqui está escrito/ não conseguirá saber/ porque ninguém sabe ler” (p. 43).

A respeito de sua poética, Camargo sinaliza a recorrência do verso em sete sílabas, o uso da redondilha maior como forma de favorecer a compreensão para uma “comunidade na maioria carente, mas pela qual ele quer ser entendido” (p. 23). Camargo destaca que essa poesia se propõe ser testemunho de seu tempo, registrando as adversidades do negro brasileiro, sendo, assim, um “propósito de salvação” (p. 23), o que diferencia Guedes de autores como Luís Gama e Cruz e Sousa, pois ainda que estes tenham realizados poemas nos quais a questão racial era contemplada, eles não visualizaram um público negro, aliás, lia-se pouco no país, inclusive entre os brancos (p. 25). Destacamos, em Guedes, a valorização da mulher negra no poema “Dictinha”, posição extremamente distante dos estereótipos do negrismo e de um modelo de beleza idealizado na mulher branca, aqui subvertida: “és a mais bela pretinha/ se não fosse profanar-te,/ chamar-te-ia... francesinha!” (p. 48).

Camargo possui um acervo vasto da Imprensa Negra e de autores negros brasileiros, o que o facilita traçar um panorama breve de autores que antecederam e foram contemporâneos de Lino Guedes, casos, além dos supracitados, dentre outros, Francisco de Paula Brito, Gervásio de Morais e Arlindo Veiga dos Santos. Expõe, com certa angústia, o silêncio de uma poesia com dicção negra desde a morte de Cruz e Sousa até a publicação dos livros de Guedes. Salienta que mesmo durante o período fértil da Imprensa Negra, dos grêmios recreativos e associações de homens de cor, principalmente na década de 1920, poucos poetas surgiram ou não deixaram maiores registros, caso de Natalino Carneiro.

Camargo expõe a boa relação de Guedes com intelectuais paulistas, como Coelho Neto, João Ribeiro e Silveira Bueno, frisa que sua obra não passou despercebida pela crítica literária, ainda que com equívocos, como considera-lo um “neossimbolista” (p. 31). Por outro lado, Camargo também expõe importantes ensaios sobre a obra de Lino Guedes realizados por Petrônio Domingues e David Brookshaw.

Destacamos as considerações importantes de Camargo acerca das escolhas de Guedes no meio literário, “com quem queria e com quem devia ficar” (p. 32). Conforme Camargo, Guedes foi contemporâneo do movimento modernista que “veio para quebrar, demolir, zombar dos figurões, refazer a mentalidade gasta”, por outro lado, os negros no geral “não tinham nada para quebrar, mas tudo ainda por fazer. O negro passou ao lado do que não lhe interessava; passou ao lado do movimento de 1922. Não era aquele o caminho de sua subida, a subida da coletividade negra, ao menos a de São Paulo” (p. 33). Completamos, conforme Oliveira (2014, p. 53-54, grifos do autor), que o modernismo brasileiro manteve os estereótipos do negrismo e do racismo europeu, a imagem do negro não rompeu a primazia do indígena, ou seja, a “literatura brasileira do século XX apenas troca o racismo do século XIX por uma ‘simpatia diluída’ que tendia a acumular o ‘pai João’, com os estereótipos e epítetos da simplicidade, da bondade e da alegria naturais.”

Lino Guedes era conservador, defensor da moral, dos bons costumes, do casamento e da família negra, da necessidade do estudo para os negros, crítico ferrenho do alcoolismo, ou seja, considerava que os negros deveriam absorver padrões brancos para se integrar à sociedade. Em seu livro Ressureição Negra, Guedes prega, exaltado, a necessidade de mudança de postura dos negros: “Estudemos. Eduquemos os nossos filhos. Selecionemos as nossas sociedades” (GUEDES, 1929, p. 15-16 apud CAMARGO, p. 45). Essa seria a Segunda Abolição. Esses posicionamentos o levaram a ter embates entre ativistas da Imprensa Negra, da Frente Negra Brasileira e com amigos como Gervásio Moraes.

Foi nessa época complexa do pós-Abolição, de dificuldades extremas para os negros, de segregação imposta, obrigando-os a unirem-se, a enquadrarem-se no ideal de branqueamento ou a rejeitarem este ideal, que Lino Guedes atuou e escreveu seu nome na história da literatura brasileira ao protagonizar os negros em sua poesia, ao se posicionar como negro e escrevendo para os negros. Uma referência obrigatória para os estudos da literatura negro-brasileira e da literatura brasileira de uma forma ampla. Para finalizar, elogiamos a inclusão, ao final do livro, do “Dossiê Lino Guedes – seleta de imagens” com diversas capas de livros, jornais e revistas com a escrita desse importante intelectual negro oriundas dos acervos particulares de Oswaldo de Camargo e Marciano Ventura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAMARGO, Oswaldo de. Lino Guedes: seu tempo e seu perfil. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2016. Coleção Con_textura Negra.

DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: Negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Senac São Paulo, 2004.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984). Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014.

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*Ricardo Riso é Mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ). Com Henrique de Freitas organizou Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira (Kitabu Editora, 2013). Autor do blog Riso – sonhos não envelhecem. Pesquisador e crítico literário, tem diversos artigos publicados em revistas especializadas no Brasil e na África. 

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