Walner Danziger, editor, dramaturgo, poeta e contista comenta o novo livro do escritor Cuti: “Tenho medo de monólogos & Uma farsa de dois gumes”. Confira!

Cuti : contundência, humor e elegância na Dramaturgia negro-brasileira

Walner Danziger*

Negros como protagonistas. Da pena do escritor ao desfile de personagens e tramas. Louve-se edição, publicação e circulação de Tenho Medo de Monólogo e Uma Farsa de Dois Gumes – Peças de teatro negro-brasileiro do escritor Cuti que sai agora pela Ciclo Contínuo Editorial. Evoé. Ato consagrado quando tão pouco interesse se presta e prestou ao longo dos tempos à publicação da dramaturgia brasileira, equívoco, uma vez que a leitura de peças teatrais é exercício enriquecedor, dinâmico e de extremo prazer.

Bem vindo.

Cuti é escriba multifacetado, passeia por vários gêneros da literatura e agora, retorna à dramaturgia com a publicação do solo Tenho Medo de Monólogo e Uma Farsa de Dois Gumes, que o próprio título define.

Tenho Medo de Monólogo. E quem não tem? Instante de estar só no palco, em lugar qualquer e perceber-se sem socorro, cúmplice, réplica. Sozinho em cena. Na vida. Encarar demônios e assombrar-se com tantas outras maravilhas possíveis.

No solo, Tenho Medo de Monólogo, Cuti em coautoria com a atriz Vera Lopes, investiga o universo feminino e nesse fino trato desperta curiosidade: que partes do texto, que fragmentos de alma da personagem Ana Cruz foram escritos, sentidos pelo olhar masculino e sensível de Cuti? Que outros tantos pertencem a Vera Lopes?

O texto tem carpintaria saborosa e cumpre com elegância os bons preceitos do monólogo, conduzindo Ana Cruz ao diálogo consigo mesma, com personagens ocultos e em relação direta com o espectador, tudo em enredo instigante e ferino desfiado pela Ana Cruz, que é gente da gente. Ana Cruz mora na minha casa, na minha rua, senta ao meu lado no metrô e samba comigo nos dias de batuque e cerveja. Mulher que carrega dores, mas sabe o que é amar e, portanto, passa longe do vitimismo e da autopiedade. Mulher de seu tempo. Humana, varada de cicatrizes e delícias.

Uma Farsa de Dois Gumes é banquete pra muitos talheres. Uma quase utopia para os palcos brasileiros dos dias de hoje. Peça com muitos personagens para muitos atores, mesmo se pensarmos em elenco dobrando.

Poucas ferramentas são tão críticas e eficazes quanto o humor, porém muitos se esquecem. O dedo em riste, o punho cerrado são certeiros, mas inibem o arriscar-se. Consagro Uma Farsa de Dois Gumes, que é texto de risco. Recriar um lugar que todos sabemos qual é. Inserir nele sua gente e questionar relações, posições, empoderamento, ocupação de espaço, os pingos nos is, o acerto de contas. Uma peça que não aponta solução: põe na banca, de forma burlesca, os fatos e cada qual com sua reflexão.

O texto teatral perde muito ou quase todo o seu sentido se não for encenado. Personagens são criados para serem materializados nos palcos, pra criarem diálogos ao vivo, direto com o espectador, limitador que fiquem aprisionadas nas páginas do livro e por essas, seria incrível a encenação de Uma Farsa de Dois Gumes, peça de cutucar incansável à ferida, peça obrigatoriamente tendo que subir aos palcos com parte de seu elenco negra e a outra branca. Ora vilões, ora porta-estandartes da esperança, alternando máscaras, algozes, salvadores, os dois lados da moeda, uma faca, cada hora um lado da lâmina cortando carne e espírito da gente.

*Walner Danziger | Diretor e dramaturgo no Coletivo Malungos de Pedra, escritor e editor do selo Edições Incendiárias

Foto divulgação | Leo Ornelas.

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